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domingo, 26 de setembro de 2010

REBELIÃO PROTESTANTE E O ATRAZO CULTURAL


... Ao nascer a Reforma, já na Europa cristã, de há muitos séculos se havia delineado, sob o alto patrocínio da Igreja, o grande movimento intelectual que preparou os esplendores das civilização moderna. As escolas primárias extraordinariamente multiplicadas cobriam o Ocidente cristão. As universidades franqueavam as suas portas à juventurde ávida de saber. Os monumentos de arte aformoseavam as cidades; as catedrais góticas, milagres de ciência, arte e fé, elevavam as suas agulhas e suas ogivas como testemunhas perenes da alta cultura das gerações que as idearam e executaram.

À Reforma já não restava nenhuma iniciativa no campo intelectual. Cronologicamente a Igreja a precedera de muitos séculos na obra civilizadora. Só a uma glória podia ela pretender: a de secundar esta ação benfazeja, ultimando a tarefa iniciada e guiando rapidamente os povos ao fastígio da grandeza espiritual, longa e laboriosamente preparada pelos esforços dos séculos que a precederam.

Estas glória, infelizmente, não a podem vindicar os reformadores. O grande movimento anticatólico provocado no século XVI pela revolta de LUTERO foi a maior remora ao progresso das ciências e das letras nos tempos modernos. O advento do protestantismo inaugurou uma crise intelectual em que por quase dois séculos se debateram os países que o abraçaram.

Esta tese, que a mais de um leitor há de causar a maravilha de um paradoxo, é a que empreendemos agora demonstrar. Seremos largos em citações e em citações contemporâneas e em citações de protestantes.25 Não se trata de declamar mas de provar e provar uma verdade histórica. Fatos e documentos irrefragáveis serão os alicerces inconcussos, sobre os quais havemos de fundamentar as nossas conclusões.

Levados pelo ódio cego ao Papado e a todas as suas instituições, os primeiros reformadores envolveram no mesmo anátema tudo o que a Igreja católica havia criado, protegido, abençoado.

As maldições começaram contra a natureza humana e as mais nobres das suas prendas: a razão e a vontade.

Para a filosofia católica, a razão é a mais excelente das faculdades humanas. Na ordem puramente natural é o farol luminoso que orienta toda a nossa atividade. Na ordem sobrenatural, sem nada perder de sua dignidade nativa, ela se eleva e enobrece, pondo ao serviço da revelação divina o melhor de suas luzes. À razão pertence conduzir o homem à fé. À filosofia incumbe a nobre missão de guiá-lo aos umbrais da teologia. As universidades são o vestíbulo do templo. Entre a razão e a fé, portanto, nenhuma contradição possível; dons, uma e outra, do mesmo Deus, pai de todas as luzes, hamonizam-se nos laços da mais estreita aliança. E eis porque a Igreja, coluna infalível da verdade, como defendeu em todos os tempos o depósito da revelação contra os assaltos da heresia, assim tutelou com não menor energia os direitos da razão, amesquinhada pelas mutilações do cepticismo ou pelos cavilações dos sofistas.

Não assim entendeu LUTERO. O princípio fundamental da sua reforma religiosa repousa sobre o aniquilamento da razão. A mais nobre das nossas faculdades de conhecimento é radicalmente incapaz de elevar-se a Deus. "Nas coisas espirituais e divinas a razão é completamente cega"26

Razão e fé, ciência e teologia se contradizem como inimigas irreconciliáveis. "A Sorbona, mãe de todos os erros e de todas as heresias, professa um princípio detestável, afirmando que uma proposição verdadeira em teologia deve também necessariamente ser verdadeira em filosofia",27 Destarte, em consequência de suas doutrinas religiosas foi LUTERO levado a admitir a teoria das duas verdades: uma tese pode ser verdadeira em teologia e falsa em filosofia, impor-se ao crente como verdade revelada e repugnar ao sábio como contradição formal. Devemos crer o que a inteligência nos demonstra como absurdo. É a renúncia à lógica e o suicídio da razão.28

Nesta alternativa de optar pela razão ou pela fé, qual o dever do crente? Aniquilar a razão, estrangulá-la com uma besta feroz. "É encessário reduzir a inteligência e a razão ao estado de faculdades latentes e mortas em que se acham na infância; só assim poderemos chegar à fé, pois a razão contradiz a fé".29 "Os verdadeiros crentes sufocam a razão depois de lhe dirigir esta advertência: ouve-me, razão minha, tu és cega, louca, nada compreendes das coisas do céu. Não levantes tanto clamor, emudece e não penses que podes julgar a palavra de Deus. Assim fecham os crentes a boca da fera, a que nenhuma outra força poderia impor silêncio e esta é a obra mais meritória, o sacrifício mais agradável ao Senhor".30 "A razão é diametralmente oposta à fé; o verdadeiro crente nada tem que ver com ela. Mais. Incumbe-lhe o dever de destruí-la inteiramente e sepultá-la. É verdade que os anabatistas fazem da razão o facho da fé, dizem que a sua missão é iluminá e indicar-lhe o caminho. A razão irradiar luz? Sim irradia luz, como... (vá em alemão o resto) wie ein Dreck einer Laterne".31

Por vezes o seu estilo intemperantemente cínico e descomposto encontra para vilipendiar a razão expressões tão baixas e obscenas que só acham parelha nas sua invectivas contra Roma.

Veda-nos o pudor traduzir aqui estas salacidades de boldel. Depois de acabrunhar a nobilíssima entre as faculdades humanas com o ultraje ignominioso de prostituta, termina atirando-a ao lugar mais imundo da casa.32 Assim falava o grande reformador nos seus sermões, assim ultimava o seu curso de pregações em Wittemberga - como se remata uma orgia.

Depois desta ignomínias, que maravilha que "os emancipadores da razão humana" se desmandassem contra os seus mais abalizados representantes e tentassem extinguir todos os focos donde ela irradia a sua claridade?

Aos olhos de LUTERO, ARISTÓTELES, não passa de um "comediante que por muito tempo enganou a Igreja com as suas máscaras gregas"; é "um Proteu, o mais astuto enganador dos espíritos; se não fora de carne, não deveríamos hesitar em ver nele o diabo".33 "De TOMÁS DE AQUINO duvido se se salvou ou se condenou... TOMÁS escreveu muitas heresias e inaugurou o reino de ARISTÓTELES, devastador da santa doutrina".34

As universidades são "espeluncas de assassinos", "templos de Moloch", "verdadeiras cidades do diabo na terra". O ideal fora destruí-las todas. O estudo das literatura clássica é um ciência ímpia, pagã, diabólica. "O deus Moloch, a que os hebreus sacrificaram os seus filho, é hoje representado pelas universidades às quais imolamos a maior e melhor parte da nossa juventude... O que, porém, nunca se poderá bastantemente deplorar é que a juventurde é, nelas, instruída nesta ciência ímpia e pagã que tende a corromper miseramente as almas mais puras e os ânimos mais generosos".35 As escolas superiores mereciam ser destruídas até aos alicerces; desde que o mundo é mundo não houve instituição mais diabólica, mais infernal".36

"Se a revelação cristã condena evidentemente a carne e o sangue, isto é, a razão humana e tudo o que do homem procede, como incapaz de nos levar a J. C., claro está que tudo isto não passa de mentiras e trevas. E no entanto as altas escolas, estas escolas diabólicas fazem grande alarde de suas luzes naturais e guindam-nas até aos céus, como se fossem não só úteis senão indispensáveis à manifestação da verdade cristã. Assim que hoje é coisa perfeitamente estabelecida que todas essas escolas são invenção do demônio para obscurecer o cristianismo... Nelas se ensina que a luz divina ilumina a luz natural como o sol ilumina e faz ressaltar um belo painel: todas essas são idéias pagãs e não doutrina de J. C. Por esta forma as escolas instruem os seus doutores e sacerdotes mas é o demônio quem fala pelos seus lábios, etc., etc.".37


Como se vê , a Reforma desde os seus primódios, com suas tendência subjetivas e sentimentais, assumiu uma posição declaradamente antiintelectulista.

Com razão, poi, escreve PAULSEN: "O protestantimo na sua origem e na sua natureza é irracional: A razão, por si mesma, nada pode conhecer de quanto concerne à fé. A palavra de Deus: eis a única fonte de fé. O papel da razão em face da Sagrada Escritura é meramente formal: determinar-lhe o sentido genuíno. A teologia não passa de uma exegese filológica: gramática in sacra pagina occupata. Uma demonstração racional e filosófica das verdades das salvação não é nem possível nem necessária... Tal a concepção de Lutero".38

Eis a doutrina; vejamos-lhe os frutos. Eis os princípio; estudemos-lhe as consequências. Os frutos e as consequência foram a baixa geral do nível dos estudos, a decadência literária e científica em toda a parte onde a Reforma prevaleceu. E o que já observara em ERASMO: "Ubiquoque regnat Lutheranismus ibi literaram est interitus"39 e em outro lugar: "Ubicumque sunt ibi jacent omnes bonae disciplinae com pietate".

Particularizemos. Foi no ensino popular que primeiro exerceram sua influência mortífera as doutrinas reformadras. A instrução dos pobre e dos humildes recebeu o primeiro golpe.

Aqui não quero outro testemunho senão o do próprio LUTERO. Em 1524 numa carta aos burgomestres e conselheiros das cidades, lamentava ele: "De dia para dia experimentamos como nos países alemães as escolas vão caindo em completa ruína. Desde que faltaram os mosteiros e as fundações, já ninguém quer ensinar os próprios filhos e obrigá-los a estudar. Isto é obra do demônio" (personagem infalível nos escitos do reformador)... Sob o papado, o demônio havia estendido as suas redes por meio dos mosteiros e das escolas de tal maneira que sem um milagre de Deus não era possível que delas escapasse uma criança"...40 "Agora que a luz do Evangelho nos libertou das contribuições e roubos dos clérigos por que não empregais uma parte do que economizastes na educação da juventude? Dos particulares não há que esperar, queiram ou possam fazer coisa alguma para estabelecer novas escolas. Os príncipes e senhores a quem incumbe este dever ocupam-se em viagens, cavalgadas, patinações, torneios ou verga sob o peso dos interesses importantes da adega, da cozinha e da alcova". "Por isto, meu caros conselheiros, nas vossas mãos ponho eu todo este negócio; mais que os príncipes e senhores tendes para isso ocasião e oportunidade".

Os destinatários da mensagem, porém, não se deram por entendidos. Cinco anos depois (1529) deplorava Lutero que "os conselheiros em todas as cidades e em quase todos os governos deixassem perecer as escolas, como se estas fossem livres, ou eles houvessem sido exonerados do dever de zelar pela instrução".

Quão fundadas eram estas queixas depreende-se de uma carta do próprio LUTERO datada de 1525 ao Príncipe eleitor da Saxônia: Tão geral era a desordem no país que "a não se começar logo uma vigorosa organização com auxílio do governo, em breve não haveria nem paróquias nem escolas nem alunos". Em novembro do ano seguinte em outra epístola: "Aqui já não há disciplina nem temor de Deus, porque, perdido o medo ao Papa, cada qual fez o que bem lhe parece". Para a educação dos meninos pobres "faltam sacerdotes e escolas".

Com o passar dos anos, a crise da escola tornava-se cada vez mais aguda. Em 1530 o reformador levanta a voz e dirige-se a toda a Alemanha: "Uma das maiores astúcias do malvado Satanás" é enganar os homens do vulgo que não mandem os seus filhos à escola nem os apliquem aos estudos. Não havendo já esperança dos monges e das freiras e dos párocos, como até ao presente, persuadem-se que não havemos mister de nenhum homem erudito, nem de estudar muito, mas só de descansar e fazer por bem comer e enriquecer... Caros amigo, vendo que os homens do vulgo se afastam das escolas e retiram de todo os seus filhos dos estudos para os dedicarem só aos cuidados do bem viver... resolvi dirigir-vos esta exortação... Quando gemíamos sob a tirania do papado abriam-se todas as bolsas e não havia mãos a medir em dar para as igrejas e as escolas. Então podiam levar-se os filhos aos monteiros, às fundações, às igrejas e às escolas. Agora que se deveriam fundar boas escolas e igrejas, e não só fundá-las de qualquer modo mas sustentá-las depois de fundadas, cerram-se todas as bolsas com cadeados de ferro".41´

Eis as benemerências de LUTERO no ensino primário. Depois de detruir as antigas escolas católicas, disseminadas pelo território alemão em tão crescido número que só por milagre não as frequentaria uma criança, entra a fazer apelos a particulares, conselheiros e príncipes para que fundem escolas. Mas as bolsa dos particulares fecham-se com cadeados de ferro, os conselheiros e príncipes divertem-se em guerras e montarias, em torneios e banquetes. A estes clamores perdidos no vazio reduz-se toda a ação prática do reformador.

Contra esta realidade esmagadora, que monta o sediço paralogismo mais uma vez repisado pelo gramático paulista: a Reforma fez da Escritura a única regra de fé; mas para conhecer o Evangelho é necessário saber ler; logo a Reforma "contraiu a obrigação de pôr cada um no estado de se salvar pela leitura da Bíblia", p. 126. Isto é silogismo e a história consta de fatos. O que devera ou pudera ter feito a Reforma pertence ao domínio das coisas possíveis impérvias tanto a mim quanto ao Sr. C. PEREIRA; o que de fato fez, acabamos de ouvir e é o que nos interessa aos que vivemos de realidades e não de possibilidades.

Do ensino primário se alastrou o contágio da desorganização e da desordem e contaminou outrossim as formas mais elevadas da instrução. Ouçamos este grande epicédio, este concerto fúnebre entoado pelos contemporâneos sobre a morte das ciências e das letras.

CAMERÁRIO, um dos mais ardentes propagadores da Reforma, lamenta a reúna dos estudos "destes escelentes estudos que no passado constituíam o mais belo ornamento e o mais nobre recreio dos espíritos. Quem não lembra o vivo ardor pela ciência que animava a juventura dos nossos tempos? Quem ignora a consideração e a estima em que era tido o talento? As coisas, andam mal! Mudaram de aspecto. Hoje, aos estudos não há nem amor nem estima, mas aversão. Os espíritos desgarraram da luz apenas nascentes do Evangelho para mergulharem no erro e nas trevas".42

EUSÉBIO MÊNIO, professor de matemáticas em Wittemberga: "Sinto grande confusão em comparar o desleixo da nossa época (1553) com zelo e ardor pelos estudos que, no século passado, se manifestava em toda a aparte. Os homens nos instruídos envergonhavam-se então de não saber algo de matemática e de física; hoje, estas ciências são tão descuradas que, nas numerosas fielira dos estudantes, raríssimos são os que não ignoram o que outroa era familiar até aos mininos de escola".43

"Eu não sei como explicar o fato, diz por sua vez TOMÁS LÂNSIO, professor de direito em Tubinga, mas as ciências, de par com os bons costumes e autoridade política, nos abandonam e emigam para o outro mundo".44

O descaso dos estudos manifesta-se outrossim pelo desprezo aos homens de ciência. Em vez de estima pública e da proteção oficial que caracterizam as épocas policiadas e os países cultos, os sábios não encontravam nas multidões senão indiferença e sarcasmo. "Sob a antiga Igreja, diz CHRISTÓFORO PELÁGIO, professor em francofort, as coisas não corriam assim: mestres e alunos cumpriam com zelo e alegria o seu dever. Presentemente, em meio a esta raça de ciclopes e de vândalos, as artes e as boas letras caíram mais baixo não obstante o deprezo e o ódio que por cá se mostram aos estudos, ainda se encontrem na Alemanha vestígios das musas. O povo e não somente o povo mas aqueles que deviam dar bom exemplo, tratam hoje os doutos como se tratavam outrora os bobos e foliões".45 Com Pelágio afina PETRI, escrivão da cidade de Mulhouse. Não se poderá negar "que nestes últimos tempos, graças ao aperfeiçoamento da imprensa, tiveram os nossos maiores grande número de doutos, assinalados, comparáveis não só, mas superiores aos sábios da antiga Roma e Grécia; Não havia em nossa pátria cidadezinha e, por assim dizer, cantinho de terra que não possuisse alguns. Depois, porém, diminuiu singularmente a estima que então se consagrava aos cultores das musas. Que digo? Tornaram-se de tal modo alvo de aversão que se apontavam o dedo como monstros e até as crianças os perseguiram com apupos e injúrias.... Tão geral em nossos dias é este desprezo dos doutos que os próprios príncipes os afastam de seus conselhos e para os grandes cargos dão preferência aos homens de espada e aos nobres educados entre as loucas dissipações do mundo.46

Que diferença há entre os chefes da igreja evangélica e os bispos papistas? Pergunta CORDI, amigo de LUTERO e professor de medicina em Marburgo. "Nenhuma, responde, a não ser que, onde dominam os primeiros, as ciências e as letras estão em decadência: onde os bispos conservaram a influência, prosperam sob a sua proteção".47


Estes depoimentos individuais, que se poderiam multiplicar sem dificuldade, são confirmados pelos relatórios oficiais, inquéritos e provisões públicas.


Nas atas dos privilégios concedidos em 1529 à universidade de Marburgo pelo eleitor FILIPE DE HESSEN lê-se a seguinte declaração de motivos: "Considerando que as artes, as letras, as ciências e os estudos liberais, em geral, nos últimos tempos caíram em grande descrédito entre o povo ignorante e ameaçam cair mais profundamente; considerando que a aversão pública aos livros, aos estudos e aos próprios doutos é tão profunda e manifesta que, parece, nada se deseja mais ardentemente que ver o mundo livre deles; considerando que, se nos não apressamos em pôr eficaz remédio a semelhante estado de coisas, os estudos se vêem ameaçados, para breve, de total ruína, etc., etc."48

Os inspetores encarregados em 1573 de visitar as igrejas e escolas da Saxônia assim se exprimem no seu relatório: "De todos os males que afligem a nossa sociedade e ameaçam a Igreja e o Estado de próxima queda, o mais deplorável é talvez o mau estado das escolas inferiores nas cidades e a falta de zelo pela religião e pela ciência quer em professores e estudantes de dia para dia sempre mais se observa".49

Em Hasse a fúria dos pregadores evangélicos havia destuído todas as escolas. Vinte anos mais tarde, o conselho da cidade de Cassel, num memória ao Eleitor, declarava que "a burguesia de há muito estava queixosa porque os meninos, depois de frequentar por vários anos a única escola da cidade, não conheciam ainda as declinações e conjugações e nem ler bem sabiam". Com o tempo agravou-se este estado de coisas e em 1635 reconhecia o governo que "se não se dessem pressa em remediar os males que dele haviam resultado, toda a sociedade corria risco de cair na desordem, no embrutecimento e na barbárie".50

Modernamente, PAULSEN não faz senão resumir a impressão geral que se desprende dos fatos e documentos da época, quando escreve que, no fim do séculço XVIII, isto é, depois dos dois séculos imediatos à implantação da Reforma, "as universidades alemãs caíram no mais baixo estado que ainda se viu, na estima pública e na influência sobre a vida esperitual do povo alemão".51

Fora da Alemanha, o protestantismno frutificou por toda a parte a mesma ignorância. Citemos de carreira para não incorrermos em demasias fastidiosas.

Na Inglaterra, declarava em 1563 o Speaker da Câmara baixa: em consequência das rapinas e saques das fundações, ficou frustrada a educação da juventura e cortados os estipêndios dos professores. Atualmente existem menos 110 escolas que outrora e as restantes são mal frequentadas. Por isso observa-se uma surpreendente diminuição de homens instruídos.52 Nas duas universidades de Oxford e Cambridge, os numerosos colégios fundados nos tempos católicos, era na sua maioria, propriamente destinados aos pobres. Com a Reforma foram aristocratizados. Mais tarde fundaram-se novas escolas superiores, mas os pobres foram sistematicamente escluídos.

Ouvimos, há pouco, os lamentos pela falta de homens cultos. Esta inferioridade intelectual pesou por quase dois séculos sobre a Inglaterra. Fale um autor insuspeito, que organizou uma estatística interessante dos tempos em que a Grã-Bretanha jazia num "oceano de protestânticos resplendores". "O período é de 1600 a 1787, escreve W. COBBETT, período em que a França jazia sob o tenebroso despotismo da Igreja católica, como exprime o jovem Jorge Rosa ou sob a ignorância e superstição monacal, na frase de Blackstone, enquanto estas ilhas [Inglaterra, Escócia e Irlanda] nadavam num mar de luzes irradiadfas por Lutero, Crammer e seus sectários. Eis sem mais o quadro:


53.
Na França. o protestantismo nunca chegou a prevalecer; ainda assim a sua primeira irrupção foi assinalada por uma desorganização no ensino. "L'introduction du protestantisme en France eut une première conséquence, cele de retarder notablement la restauration de l'ensignement primaire en paralysant les efforts de l'Eglise et en annulant pour un temps les effets de l'invention de l'imprimerie".54 DE GEAUREPAIRE aponta=nos a causa dest decadência da instrução popular: "L'ensignement popuaire était g´néralement confié aux ecclésistiques et aux clercs qui aspiraient a le devenir; il était assem ordinairemente mis à la charge des fabriques e6t partout el était prcé sous la suveillance du clergé. Il est donc aisé de concevoir combien les écoles durent souffrer des attaques dirigées par ceux de la religion nouvelle contre de culte catholique".55

Na Suíça, da Universidade de Basiléia escrevia ECOMPÁDIO em 1529: "Quase todas as escolas foram fechadas, e nas que até aqui eram frequentadas por muitos alunos, vêm-se ao presente pouquíssimos, como se estivéramos em tempo de peste; assim foram as coisas e úteis evnvolvidas com as inúteis no desprezo geral".56 Poucos anos depois, outro pedagogo suíço assim frisava a incapacidade pedagógica e organizadora da Reforma: "SDe quisermos levantar as escolar que até aqui tão deplorável e diabolicamente foram destuídas, dispersas e devastadas, devemos de novo restituir os oífiocs eclesiásticos à sua natural dignidade".57

Na Dinamarca, as escolas decaíram a tal ponto que numa circular dirigida em 1594 pelo senado aos bispos (protestantes) do reino se comunicavam várias instruções para impedir a ruína geral dos estudos que não se podia negar ser iminente.

Na Suécia mesmos danos, mesmo influência perniciosa. Em duas epístolas dirigidas em 1533 e 1540 pelo rei à nação lemos o tópico seguinte: "Estamos convencidos e vos informamos que as escolas nas cidades do reino se acham em deplorável estado de decadência. Onde outrora havia trezentos estudantes não há hoje mais de cinquenta. Grande número de paróquias existe, em que as escolas se acham completamente desertas, o que não pode deixar de causar imensos prejuízos ao reino".58


O autor citado acaba de indicar-nos outra via por onde facilmente podemos julgar da decadência introduzida pela Reforma nos institutos superiores de ensino: o exame dos registros de matrícula. Ao unânime testemunho dos contemporâneos acrescentemos a aridez eloquente dos algarismos.

A universidade de Colônia, que no fim da idade média era a mais célebre das universidades renanas e chegara a contar cerca de 2.000 estudantes, com a revolução político-religiosa entrou rapidamente a decair de sua antiga grandeza. Em 1521 só se acham inscritos 251 alunos, em 1527, 72 e em 1534 apenas 54!

Eufurt era outro centro intelectual que desempenhara importantíssimo papel na evolução espiritual da Alemanha. Consultemos-lhe as matrículas. Em 1520, encontramos 311 estudantes; no ano seguinte esse número baixa a 120, em 1522 a 72, para conservar-se até 1527 abaixo de 14. "Todos os estudos científicos jazem por terra, escrevia HENRIQUE HERBEROLD, reitor da Universidade, as honras acadêmicas são desprezadas, na juventude estudiosa desapareceu todo o pudor". O próprio LUTERO, lembrando-se dos tempos de sua juventude, quando estudava em Erfurt, confessava mais tarde: "Tal era outrora a consideração e a fama de Universidade de Erfurt que, em seu cofronto, todas as outras não passavam de pequenas escolas; hoje, desapareceu toda essa glória e majestade; a Universidade está inteiramente morta". 59

Em Leipzig, a matrícula atingia nos anos de 1507-1510 a elevada cifra de 1948 estudantes; em 1517-1510 desde a 1.445; em 1527-1530 a 419; em 1537-1540 a 686, número esse desconhecido nos anais da Universidade havia mais de um século.

Em Rostock a inscrição de novos estudantes é também índice da decadência. Em 1524 inscrevem-se apenas 44 estudantes, em 1525, 15 e nos anos seguinte apenas 8!

A universidade de Wittemberga, quartel-general do reformador, contava na primeira metade do século XVI cerca de 3.000 estudantes; em 1598 eram apenas 2.000, e em 1613, 786.

Mesma decadência em Inglostadt e Francoforte. Compreende-se agora o juízo severo de R. WORTHER, teólogo suíço, que visitou os institutos superiores de ensino da Alemanha e, em 1568, escreveu as suas impressões: "As universidades alemãs acham-se ao presente em tal estado, que, fora a ignorância e negligência dos professores e a despudorada imoralidade que nelas reina, nada há digno de atenção.60

À vista de todos estes documentos, nenhum leitor sensato poderá ainda duvidar da causa deste descalabro geral dos estudos nos países reformados. A indisciplina e desregramento de costumes em professores e alunos foram a causa imediata, a pregação dos reformadores que assoalhavam uma doutrina imoral e desprestigiavam a ciência, a causa remato. Tal é a lição que se desprende espontânea do exame dos depoimentos contemporâneos.

A corrupção de costumes na juventude, a impaciência de disciplina não se conciliam com a aplicação ao estudo e o amor desinteressado da ciência. Colégios e universidades se haviam convertido em focos de dissolução. Na própria Saxônia, a Universidade de Wittemberga, onde dogmatizava LUTERO, era tida como sentina [Foco de vícios e de torpezas] pestilencial (Faetudan ckican duabiku) e dizia-se às mães que melhor fora apunhalar os próprios filhos que mandá-los lá a estudos.

Num discurso à Universidade, dia MELANCHTHON em 1527: "Quando considero como decaiu o pudor e domina a insolência, aperta-se-me de dor o coração. Nunca se mostrou a juventude tão petulante contra as leis. Agora só quer viver segundo o capricho, não se submete a ninguém, surda à palavra de Deus e às leis". Quatro anos mais tarde, num exortação aos estudantes: "Não é vontade de Deus que vos ajunteis aqui como uma multidão de ébrios para bacanais ou como centauros para bródios [festim de comes e bebes]".61

JOAQUIM CAMERÁRIO, outro protagonista da Reforma, escrevia em 1536 que muitas vezes lhe tinha assaltado a dúvida "se não que só parecem destinados a asilos de pecados e de vícios; quisera falar contigo de viva voz sobre essas coisas, porque não são destituídas de fundamentos as queixas" E lembrando-se dos tempos de sua juventude escrevia ainda o célebre filólogo alemão em 1535: "A educação e a vida são hoje muito diferentes do que na nossa puerícia"; e em 1561: "entibiou o fervor dos estudos: já não há quem deles se ocupe com seriedade; correm todos temerariamente aos empregos públicos e tudo se governa e administra de tal jeito que os espíritos reflexivos não podem deixar de temer a ruína iminente das instituições liberais e dos estudos de erudição".62

GLAREANO, professor da universidade de Friburgo, em carta de 21 de janeiro de 1550 ao amigo Egígio Tschudi queixava-se: "A juventude de hoje é tão pervertida que se assemelha à dos tempos de Sodoma e Gomorra. Embiraguez, infidelidade, irreverência aos santos e desprezo de Deus apoderaram-se de todos os espíritos". Tres anos mais tarde ao mesmo amigo: "O temor de Deus desapareceu da Alemanha; a gente tem a palavra de Deus nos lábios e Satanás no coração".63

Em Thorn o colégio dos professores assim informava o conselho da cidade em 1588: "Não é mister descrever por miúdo os males de que adoecem as escolas; são patentes a todos. A vida viciosa e o desaparecimento completo do pudor doméstico são a fonte de todos os outros males".64

Não exagerava LUTERO, quando em carta ao príncipe Jorge de Anhalt dizia: "Vivemos em Sodoma e Gomorra; de dia para dia tudo vai de mal a pior".65 Sodoma e Gomorra é de fato a comparação que ocorre mais frequente na pena dos contemporâneos para descrever o dilúvio de corrupção que alagava o país e no qual afundava principalmente a juventude escolar.

Mas o exemplo vinha de cima. Se os estudantes eram devassos e indisciplinados, os professores não eram menos negligentes nos seus deveres profissionais.

De Rostock escrevia JOÃO CULMANN em 1555: "impossível fazer a visita de todo o Mecklemburgo; os professores estão, quase todos, ausentes; aqui há apenas 100 estudantes e estes ameaçam também se dispersar".66

Passa-se meio século e Rostock não melhora. É de 1604 esta informação de PEDRO FABRICIUS ao seu amigo Jorge Calixto: "Não pode haver maior indolência do que a que domina aqui em todas as faculdades. Professores há que há três anos têm esse título e ainda não fizeram uma só preleção e nem mesmo puseram os pés numa aula".67 Em 1584 o duque GUILHERME V visitou pessoalmente a universidade de Ingolstadt. Depois de lembrar quanto fizera para elevar o nível do estabelecimento, deplora que todos os seus esforços "na maior parte dos professores não tenha produzido resultado algum; não só não melhoravam, mas eram agora mais descuidados e negligentes que em nenhuma outra época".68


Sobre a pregação das novas doutrinas pesa, em última análise, a responsahiblidade desta deplorável decadência da instrução. Nasveghando na esteira sulcada por LUTERO, muitos de nosos apóstolos iniciaram uma verdadeira campanha contra as escolas. Eram fundações católicas; bastava para se tornarem alvo dos seus ódios e assaltos. Em Vittemberga, berço do protestantismo, os protestantes GEORGE MOHN e GABIEL DÍDIMO proclamaram do alto do púlpito que o estudo das ciências era inútil e até pernicioso; que não se podia fazer ação mais meritório que destyuir escolas e academias. Resultado; a escola da cidade transformou-se em padaria.69

Em Basiléia, GLAREANO fazia observação análoga: "Muitíssimos pregadores se esforçaram ostensivamente por implantar sobre as ruínas da Igreja e a ciência uma espécie de oclocracia [Sistema de governo em que predominam as classes populares] ou domínio da plebe ignorante, sob a direção de predicantes demagogos. Também aí se professava que o estudo do latim e do grego era inútil e até nocivo ao cristão. Os mestres de boas letras eram acusados ao povo como fautores de paganismo e de tendências pagãs.71

Em Brandeburgo, o margrave, depois de deplorar a ruína dos estudos e a volta à antiga barbárie, publicava uma ordenação contra os pastores, responsabilizando-os do presente estado de coisas, porque "descreditaram a ciência e impeliram a juventude a dar-se às profissões manuais".72 "Apenas, diz URBANO RÉGIO, ouviram muitos que o cristão é imediatamente instruído e iluminado por Deus, entraram a considerar o saber como inútil. Daí a persuasão de alguns que, quanto mais ignorantes, maiores títulos julgam possuir aos dons do Espírito Santo".73

Agora, o contraste. Enquanto a Reforma assim envolvia a Alemanha nas sombras de um pavoroso eclipse, a Igreja organizava uma cruzada de luz para salvar a civilização européia ameaçada. As ordens religiosas, que, nos planos da Providência, surgem sempre para ocorrer às exigências da Igreja, puseram logo ao seu serviço legiões e legiões de sábios e educadores. Teatinos, barbanitas, oratorianos, somascos, lazaristas, irmãos da Doutrina cristã, beneditinos reformados e jesuítas desceram a campo para salvar pela instrução e pela fé as almas seduzidas pela ignorância e pela heresia. Não entraremos aqui em pormenores sobre a ação civilizadora dos novos apóstolos. Diremos somente que em menos de 50 anos os jesuítas haviam coberto de colégios os territórios assolados pela protestantismo. Colônia (1544), Treviri (1561), Mogúncia (2581), Augsburgo (1582), Dilinga (1563), Heiligenstadt (1575), Coblença [imagem à direita] (1282), Panderbon (1585), Würsburgo (1588), Münster e Salisburgo (1588), Bamberg (1595), Antuérpia, Praga e Posen possuím os mais célebres dos seus estabelecimentos de ensino.

A elevada frequência, que para logo atingiram esses colégios, é prova evidente do zelo da nova ordem pela difusão do ensino e da excelência dos seus métodos pedagógicos. Em Colônia, onde se ensinava não só o latim e o grego, mas ainda as matemáticas e a astronomia, havia, em 1558, 500 externos e 60 internos. Vinte anos mais tarde o número dos cursos no ginásio foi elevado a 7 e a matrícula subiu a 840. Em 1581, entre internos e externos, havia mais de 1.000 alunos. Neste mesmo ano Coblença e Heiligenstadt contavam cerca de 200 estudantes, Mogúncia 700 e Trier 1.000. Em 1588, a escola catedral de Münster na Westfália [fig.à direita] passou às mãos dos novos educadores. Aí começaram a ensinar a 300 alunos; dois anos depois eram 900, em 1592, 1.100 e, pouco antes da guerra dos trinta anos, 1.300. Na Baviera, sobressaíam, entre outros, os colégios de Paderborn, Augsburgo e Munique. O primeiro, que era o ginásio da cidade, foi confiado aos jesuítas em 1585 com 140 alunos, que no fim do mesmo ano já eram 300, e no ano seguinte 400. O ginásio desenvolveu-se tão rapidamente que, em 1614, foi elevado à categoria de Universidade (mas sem faculdade médica). O colégio aberto em Augsburgo em 1582, sete anos depois foi elevado a liceu, atingindo logo uma frequência média de 500 a 600 estudantes. O progresso não foi menos rápido em Munique: nos primeiros anos a frequência oscilou entre 300 e 500; em 1587 subiu a 600, em 1589 a 800 e em 1600 a mais de 900.

Em todos estes estabelecimentos de ensino floresciam os bons costumes, vigorava a disciplina e medravam as boas letras. âo serei eu que o há de dizer. A palavra aos protestantes contemporâneos. Em 1581, ANDRÉ DUDITH escrevia de Breslau a um amigo: "Não me admiro ao ouvir que todos afluem aos colégios dos jesuítas. Possuem um saber variado, são eloquentes, ensinam, pregam, escrevem, disputam, dão à juventude instrução gratuita e com um zelo incansável; sobretudo, recomendam-se pela modéstia e vida moral incontaminada".74 Alguns anos mais tarde, o célebre H. GRÓCIO, lançando um olhar retrospectivo sobre a atividade pedagógica dos filhos de S. Inácio, assim se exprimia: "Os jesuítas são tidos em grande consideração no mundo pela santidade da vida e plo êxito com que instruem a mocidade nas velas letras. Em 100 anos, desde sua fundação, a Companhia produziu mais homens célebres em todos os ramos do saber e eminentes na pureza da vida que nenhum outra sociedade".75

Típico, porém, sobre todos é o testemunho de NATHAN CHYTRAEUS. Investigando as causas da decadância dos estudos entre os "evangélicos", assim se exprimia o célebre professor de Rostock, num oração fúnebre pronunciada em 1578: "Confesso que me detive ante a opinião dos que atribuem este triste estado de coisas aos decretos da Providência. Mas semelhante suposição é evidentemente uma impiedade, como aliás o demonstra suficientemente a prosperidade de algumas outras escolas em que vigem todas as boas usanças que asseguram a ordem e a discipina. De fato, porque motivo poderiam os colégios dos jesuítas, não obhstante as distâncias que os separam, assinar-se pela boa ordem, pela disciplina, pelo zelo de todos os cumprimentos dos próprios deveres, se o mau estado das nossas universidades fosse realmente efeito da vontade divina? E por que não poderemos nós, que caminhamos à viva luz do Evangelho, fazer o que fazem os jesuítas que ainda vivem nas trevas?" 76 Não nos é possível negar que somos responsáveis pelos males que nos afligem. Comparai o que se vê hoje com o zelo e ardor para o bem que animavam os nossos antigos predecessores. Quem poderia ler sem admiração estes estatuos em que ainda respira a sua sabedoria? etc., etc." 77


Se dos estudos literários e científicos passarmos à cultura das belas artes, facilmente verificaremos que neste campo foram ainda mais profundas as devastações da Reforma. O protestantismo não compreendeu o pensamento sublime da Igreja de pôr ao serviço da religião o que de mais fino e delicado produziu o espírito humano no domínio do belo. O templo católico é o santuário da beleza. A arquitetura, a escultura, a pintura, a decoração, a música, a eloqûência aí se estreitam na mais harmoniosa aliança para elevar a alma do crente a união com Deus que é eterna Verdade e Beleza eterna.

Estéreis como a revolta e áridos como o erro, os filhos de LUTERO não encontraram no coração gelado e ressequido pelo ódio a fibra humana, que vibrasse em uníssono com estas harmonias divinas da criação. O primeiro grito dos que protestaram foi um grito contra a arte; seus primeiros atos, atos de vandalismo atroz. Precipitaram-se sobre os nossos monumentos religiosos, os nossos altares, as nossas estátuas e arrasaram tudo: "Imbuída do espírito do seu fundador, monge invejoso e bárbaro, diz CHATEAUBRIAND, a Reforma declarou-se aberta inimiga das artes. Riscando, por assim dizer, a imaginação das faculdades humanas, cortou as asas ao gênio e tornou-se pedestre... Se a Reforma ao nascer fosse coroada de pleno êxito, teria determinado, ao menos por certo tempo, um regresso à barbárie".78

É realmente incalculável o dano causado às belas-artes pelos discípulos do grande apóstata."Os prejuízos em ouro e prata produzidos pelas suas pilhagens, escreve PRESCOTT, podem ser avaliados. As construções tão cruelmente mutiladas puderam ser retocadas pelo cinzel do arquiteto. Mas quem poderá calcular a perda irreparável ocasionada pelo destuições do manuscritos, estátuas e pinturas? É um fato doloroso que os primeiros esforços dos refomados fossem em toda a parte dirigidos contra este monumentos dos gênios, que haviam sido elevados e mantidos afetuosamente pelo patrocínio do catolicismo".79 "Os Países-Baixos possuíam um número extraordinário de igrejas e mosteiros. A sua fina arquitetura e as suas bem trabalhadas decorações eram o sinal precoce do desenvolvimento intelectual nestas regiões. Tudo o que inventara a ciência e criara a arte, tudo o que produzira a mecânica, e prodigalizara a riqueza, havia sido recolhido nestes templos magníficos. Ora, no espaço de sete dias e sete noites, desencadeou-se o terrível ciclone que destruiu todos estes tesouros... As artes por toda a parte deploram os seus despojos... Apenas uma ou outra estátua e pintura escaparam à ruína. O número de igrejas profanadas pelas turbas de calvinistas fanáticos nunca pôde ser contado. Na só província de Flandres foram saqueados 400!"80

Eis as benemerências da Reforma no culto das artes.



A causa está julgada. Não declamamos. Fomos fiéis ao nosso programa: reconstruir a história em toda a singeleza de sua verdade, lembrando fatos incontestáveis e citando documentos que não admitem réplica. Quase sempre cedemos a palavra a testemunhas insuspeitas. A conclusão que se impõe a todos espíritos desapaixonados é a que expressou CARLOS VILLERS, aliás advogado ardente da Reforma: "Somos constrangidos a convir que depois da irrupção dos povos do Norte sobre o império de Roma, nenhum acontecimento causou à Europa estragos tão longos e tão universais como a guerra acesa ao fogo da Reforma. Sob este aspecto é infelizmente verdadeiro que ela retardou o progresso da cultura geral".81

A época era para grande vôos na senda do progresso. A florescência das universidades, a invenção da imprensa, a emulação dos doutos, as novas descobertas científicas, os tesouros acumulados por tantas gerações de investigadores e filósofos, a renascença da literatura clássica, tudo preparava para a cristandade uma época de luzes e de glórias. A explosão da revolta religiosa sufocou o grande movimento nascente e envolveu a Europa setentrional num manto de trevas e de sangue. Enquanto as nações que a abraçaram e promoveram, mergulhavam por quase dois séculos na ignorância,82 a Igreja coroava o seu trabalho multissecular nos países que lhe ficaram fiéis ou que cedo rejeitaram o veneno dos inovadores. A Itália produzia o séculos de Leão X, a Espanha e de Carlos V, a França e do Luís XIV.

Concluamos com BALMES: "A inteligência, o coração e a fantasia não devem coisa alguma à Reforma: antes que ela nascesse já essas faculdades se desenvolviam vigorosas; depois de nascido continuaram no seio do catolicismo com o esplendor e a glória de outrora. Homens ilustres, ornados com a auréola com que se cingiram a fronte, aplaudidos pro todos os povos cultos, campeiam nas fileiras católicas. Caluniou quem disse que a nossa religião tende a pear e entenebrecer a intaligência. Não; é impossível; filha da luz, não pode produzir trevas: feitura da própria verdade, não precisa fugir os raios do sol e abater-se nas entranhas da terra, mas pode caminhar à claridade do dia, afrontgar a discussão, congregar em redor de si os espíritos na certeza de lhes aparecer tanto mais pura, tanto mais bela, tanto mais admirável, quanto mais atentos e mais de perto a contemplarem".83

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25. Dificilmente ao leitor brasileiro será dado ter à mão estes documentos contemporâneos da origem da Reforma e que constituem os preciosos cim´´elios das bibliotecas da velha Europa. Poderá, porém, consultá-los nas obras clássicas de DOELLINGER, DENIFLE, JANSSEN e GRISAR que citaremos em bibliografia no fim deste capítulo e do seguinte.

26. Erl. XLV, 336; XIVII; LI, 400.

27. Walch. X, 1598. Cfr. DENIFLE, Luther und Luthertum I(2), 6538 sgs. DOELLINGER, Die Refomation, I(2), 481.

28. Sobre a teoria das duas verdades em Lutero cfr. E. ZELER, Geschichte der deutshen Fhilosophie. München, 1873, p. 29. STOECKEL, Geschichte der Philosophie des Mittelalters, Mainz, III, 512, ss.; Ver not precedente.

29. Erl. XLIV, 156 ss.; Luther's ungedr. Predigten heraugegeben von Brtunms, p. 106.


30. "Fides rationem mactat et occidit illam bestiam quam totus mundus et omnes creaturae occidere no possunt... Sic omnes pif... mortificant rationem, dicentes: Tu ratio, stuta es, non supis quae Dei sunt, itaque ne obstrelpas mihi, sed tace non judica, sed audi verbum Dei et crede. Ita pii fidem mactant bestiam maiorem mundo, atque per hoc Deo gratissimum sacrificium et cultum exhibent". Weimar, XL, Iabt., 362.

31. Erl. XLIV, 156, ss.

32. Aí vai velado nas obscuridades do alemão o texto íntegro: "des Teufeis Braut, Racio, die schöne Metze, eine verfluchte Hure, eine schaebige aussaetzige Hure, die Hoechste Hure des Teufels, die man, auf dass sie hässlich werde, einen Dreck in's Angesicht werfen solle, auf das heimlich Gemach solle sie sich trollen, die Verfluchte Hure, mil ihrem Dunkel, usw" Erl. XVI, 142-148. DOELLINGER, I(2), p. 480; DENIFLE I(2), 639. Erl XX, p.479. Quase todas as palavras que começam por maiúscula são palavras infames.
Ver outros impropérios contra a razão no Comment. in epist. ad Galatas, III, 6, Ed. Irmischer, I. 331. Ed. Weimar XL, 1 abt: a razão é "atrocissimus Dei hostis", p. 363, fons fontium omnium malorum!, p. 365.

33. DE WETTE, I, 15.

34. Weimar, VIII, 127.

35. Walch, XIX, 1430.


36. Walch, XII, 45

37. Walch, XI, 459, 599. As três últimas citações apud DEOLLINGER, Die Refomation, I(2), 475-77.

38. PAULSEN, Philosophia militans (3), Berlim, 1908, pp. 35-39. Enquanto permaneceu fiel às doutrinas de Lutero e Calvino, a igreja protestante não teve poesia, nem história, nem filosopia. Sim, certamente, enquanto as comunidades protestantes foram luteranas não tiveram filosofia e quando acolheram uma filosofia cessaram de ser luteranas. Tanto foge a sua fé da filosofia e a sua filosofia da fé". MOEHLER, Gesammelle Schriften und Aufsaelze, Regensburg, 1839-40, I, 260. Desta filosofia antiintelectualista nasceu uma tendência hostil às conquistas científicas já realizadas. "A Reforma sepultou injusta e odiosamente muitos conhecimentos de que estavam de posse os seus contemporâneos, tornando-se assim responsável das crise posterior do protestntismo". A. HARNACK, Lehrbuch der Dogmengeschichte, III(4), Tübingen, 1910, p. 871.

39. Carta de Basiléia a W. Pirkheimer, 1528, Opera, Ed. Clericus, Lugduni Batavorum, 1702-1706, III, col. 1139. Cfr. DOELLINGER, Die Reformation, I, 470-71.

40. Note-se: por obra do demônio e dos frades havia tantas escolas e tão frequentadas que era necessário um milgre de Deus para que um menino não recebesse instrução. E o Sr. Carlos Pereira a escrever: "O analfabetismo é a vida cancerosa da Igreja Romana"! p. 126.

41. Os trechos citados e muitos outros não menos expressivos podem ler-se em JANSSEN, Geschichte des deutschen Volkes, t. VII (13-14), p. 16, Freiburg, i. Br. 1904. Nas obras de Lutero, o manifesto "An die Ratherren aller Staedte deuschen Landes, dass sic christliche Schulen aufrichten und halten sollen" acha-se, na ediç. Weimar no 6. XV. 27-53; o sermão de 1530 "dass man Kinder zur Schule halten soll", Weimar, 12 Abt., pp. 517-588.

42. CAMERARIL, Praecerpta morum et vitae, Lipciae, 1555, p. 1-5.

43. EUSEBII MENII, Otatio de vitas jac. Milichii, Witembergae, 1562, B.

44. LANSII, Mantissa Constitutionum, p. 68.

45. CHRIST. PELAGH, Pleias orationum sacrarum, 1618, N. 2 b. - O. 2 b.

46. JAKOB HEIRICH PETRI, Der Stadt Müthausen Geschchten, Mulausen, 1838, p. 494.

47. Quanto Evangelici ditent discrimine dicam
..................Papistis ab episcopis?
.......Non faz est, nisi quado, rerum potentibus illis
..................Bonae cadant jam literae,
.......Quarum magna sub his tamen emolumenta fuerunt
..................Dignumque juxta praemium.

EURICI CORDI, Opera Poetica, s. l. etc. a. f. 109, 278.

48. ROMMEL'S Philipp der Grossmütthige, Landgraf von Hessen, III, p. 348.

49. STROBAND, Instituto literata, III, 328.

50. CARR FRID. WEBER, Teschichte der staedtichen Gelehrtensuschule zu Cassel, von 722-1599, Cassel, 1843, p. 17; von 1599-1709, Cassel, 1844, p. 61.

51. PAULSEN, Die deutschen Universitaeten und das Univsitaetsstudium, Berlin, 1902, pp. 49-50.

52. COLLIER'S, Eccles. History of Grat Britain, II, 480 e HALLAM, Introduction to the literature of Europe, Paris, II, 39, cit. por DOELLINGER, Kirche und Kirchen, p. 209.

53. WILLIAM COBBETT, The protestant Refomation, letter I. Ver aí expostos os critérios objetivos que serviram de norma ao autor na organização do quadro acima.

54. ALLAIN, L'instruction primaire en France avant la révolution, p. 44. Cit por A. PAQUET, L'Église et l'éducation, etc., Québec, 1909, P. 93.

55. Cit. por L. A. PAQUET, ibid.

56. THOMMEN, Geschichte der Universitaet Basel, 1532-1632, Basel, 1889, p. 305.

57. CONRADO CLAUSER, De education puerorum, a544, p. 94. J. B. GFALIFFE assim resume a ação de CALVINO sobre o progfresso clientífico: "Genève comprimée et sterilisée par son depotisme, n'a produit pendant des siècles que des théologiens... Biern loin d'avoir accéleré - e da marche de son siècle, il le cloua se firmement à lui, qu'il resta stationaire pendant plus de 100 ans et ne put se remettre en mouvement qu'avec une peine et une lenteur inouies. Ja crois avoir étudié h'histoire aussi profundément et auseei consicencieusement que qui que ce soit, e très certainement je ne suis sous l'influence d1aucune partialité personelle". J. B. GALIFFE, Notices généalogiques, etc., III, 107-08.


58. S. THYSELIUS, Unkuden z. Schwed. Ref. - Gesch, unter Gustav I Wasa no Zeityschrift fuer hist. Theologie, de Niedner, 1847, pp. 226 ss., 244.

59. Erl. LXII, 187.

60. Ms. Bibl. Monac., n. 175. DOELLINGER, Die Reformation, I(2), 509.

61. Corpus Reformatorum, X, 934, 939.

62. Cfr. estas e outras citações de CAMERARIUS apud DOELLINGER, Die Reformation, I(2_. 524. 528; LUTERO também confessa a diferença dos tempos de sua juventude: "quando eu era menino, escrevia ele, corria pelas escolas o provérvio: non minus est negligere scholarem quam corrumpere virginem... e este era então o pecado que se julgava mais grave". Weimar, XV, 33.

63. SCHREIBER, Henrich Lorit Glareanus, seine Freunde und seine Zeit, Freiburg i. B., 1837, pp. 89-90.

64. STROBAND, Instiltutio literata, III, praef. 3, a 3, d. 4. b.

65. DE WETTE, V, 615.

66. GOERGES, Lukas Lossius em Schulmann des 16 Jahhunderts, Lüneburg, 1884, 10 A. 2.

67. C. L. TH. HENKE, Georg Kalixtus und seine Zeit, Halle, 1853, I. 86, p. 2.


68. PRANTL, Geschichte der Ludwig-Maximilians- Universitat in Ingolstadt, Landshut und München, Müchenm, 1872, II, 320-21.

69. Epístola de Torgaviensibus Antistibus, Wittembergae, 1744, p. 16.

70. WINER, De facultatis evangelicae in Universitate Lipsiae originibus, Lipseae, 1839, 23.

71. Ap. DOELLINGER, Die Refomation, 6. I (2), pp. 472-3.

72. Relighionsakta, 6. XI, N. 64, 66.

73. URBANI REGH, Formulae quaedam caule loquendi, Regiomaonti, 1672, p. 13.


74. SUDHOFF, C. Olivianus und L. Ursinus, Elberfeld, 1857, 504-5.

75. Cit. na obra Die Jesuiten nach dem Zeugnisse berühmter männer, Regenburg, 1891, p. 242. O gramático brasileiro, porém, vê mais longe. Para ele: "os colégios dos jesuítas são o estímulo intelectual e moral da juventurde". Que quer? São modos de ver.

76. Já dizia Isaias: Ponentes tenebras lucem et lucem tenebras. v. 20.

77. Memorae philosophorum, oratorum, etc., ed. Rollius, I, pp. 106-115, 140.

78. CHATEUBRIAND, Etudes historiques sur la chute de l"Empire Romain et la naissanche et progrès du Chstianisme. Ver toda esta página citada por BALMES, El protestantismo, c. 72.

79. W. H. PRESCOTT, History of the Reign of Fhilip the Second, Leipzig, 1857, t. , p. 30-31.

80. MOTLEY, History of lhe Rise of the Dutch Republic, t. I, c. 7.

81. CHARLES VILLERS, Essai sur l1espret de la Réforme de Luther(5), Paris, 1851, p. 227.

82. Por onde se vê que o progresso científico da Alemanha moderna nada tem que ver com o protestantismo. As ciências florescem hoje na Alemanha, como na França ou no Japão: por impulso geral da civilização contemporânea, fruto da semeadura feita pela Igreja católica nos séculos passados e transplantado até às regiões pagãs. Na história da cultura científica, à Reforma só cabe o papel inglório de haver retardado o momento atual.

83. BALMES, El protestantismo comparado com el catholicismo, c. 72.

Bibliografia. Sobre a decadência intelectual produzida pela Reforma cfr. DOELLINGER, Kirche und Kerchen, München, 1861, p. 209 ss.; JANSSEN, Geschichte des deutschen Volkes, Freiburg i. B., Herder, 1897, t. VII(13-14); AUGUSTE NICOLAS, Du protestantisme de toutes les héresies dans leur rapport avec le socialisme, l. III, c. 3; DOELLINGER, Die Reformation, ihre innere Entwichelung und ihre Wikungen, 3 vols. Regensburg, 1846-48, 6. I, 408-582;ZAHN, Science catholique et savant catholiques, trad. do inglês por J. Flageolet, Paris, Lethielleux, 1895, 1. 4, c. 2, pp. 249-285; L. A. PAQUET, L'Eglise et l'Education à la lumière de l'hsitoire et des principes chrétiens, Québec, 1909, c. IX, PP. 79-97.

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